quarta-feira, 22 de agosto de 2018

O ESCRITURALISMO E A CONTINUIDADE DOS DONS ESPIRITUAIS* — Vincent Cheung  

É possível ser um Escrituralista e acreditar na continuidade dos dons espirituais, como fontes de conhecimento da verdade?
Se sim, como  justificaria biblicamente?

Um motivo para eu não me considerar um Escrituralista, é não usar a palavra Escrituralismo, isso porque eu acho que é uma palavra muito boba. Podemos chamar por uma questão de preferência, mas a palavra soa tão estranha para mim. No entanto, a razão mais importante é que, se considerarmos como o Escrituralismo é definido e praticado por aqueles que se chamam Escrituralistas, então eu não sou um Escrituralista. Eu nunca fui um Escrituralista, e nunca serei um Escrituralista. - porque nunca vou fingir que deduzirei a minha cosmovisão das Escrituras, mas na realidade rejeito as Escrituras, nem os mais básicos e as promessas óbvias do Evangelho. Eu discordo com alguns de seus pontos principais, e eles não iriam querer-me para representá-los, então não devem me chamar de  Escrituralista, e nem deveria alguém me considerar um. Conforme definido e praticado pelos Escrituralistas, concordo que o Escrituralismo é incompatível com a continuação de milagres e revelações, e o Escrituralismo está errado. Como seus adversários, na prática, é uma filosofia humana que se impõe na Escritura, ao invés de verdadeiramente deduzir sua cosmovisão das Escrituras. O Escrituralista assume o que é verdadeiro ou falso, possível ou impossível, desde o início, além do que as Escrituras realmente dizem, desafiando até mesmo o que a Bíblia realmente diz. Dada sua reivindicação explícita como o sistema é produzido, isto o torna uma das mais hipócritas escolas de pensamento, em comparação com muitos outros, embora reconhecidamente o seu conteúdo é ainda superior ao de muitos outros. Mas isso só significa que os outros são assim ruins, que eles nem sequer recebem reconhecimento.

Outro lado do ponto,  é que a minha epistemologia nunca veio de Gordon Clark. Eu derivei minha epistemologia da  Escritura quando comecei como um pregador adolescente com um Ministério de cura. A Bíblia diz para andarmos por fé e não por vista. A Bíblia diz que Abraão, embora soubesse que seu corpo estava morto, e o ventre de Sarah estava morto, não obstante creu na promessa de Deus. Ele seguiu a palavra de Deus, ao invés de seus sentidos... quando veio a cura. A Bíblia diz que embora Deus falou do céu, alguns pensaram que foi um trovão. Também diz que Deus usou os sentidos das pessoas para enganá-los em guerra e assim por diante. Isto é onde minha epistemologia veio, muito antes, de  nunca estudar qualquer teologia formal ou filosofia. O papel de Clark no meu pensamento foi para refinar a minha linguagem, para que eu pudesse falar com aqueles que pensam com termos filosóficos. Na minha vida privada e pregação, eu ainda não uso tal linguagem e tais  categorias, mas falo em termos principalmente bíblicos. É estranho que eu sou considerado como uma espécie de autoridade sobre o Escrituralismo junto com  Gordon Clark. Nunca aleguei ser isso, e repetidamente nego a quem perguntar. Não obstante, eu me abstenho do confronto com Escrituralistas e seguidores de Clark em público, porque acho que na área da filosofia cristã, eles estão fazendo um  trabalho melhor do que seus adversários. O Escrituralismo como tal, no entanto, não é bíblico e não pode ser justificado biblicamente. Se um sistema verdadeiramente deduz seu conteúdo da Bíblia, poderia deduzir a garantia do Evangelho do autoconhecimento, as crescentes manifestações dos dons espirituais e poderes e uma série de outras coisas mais.

*Email como resposta a uma pergunta do editor do blog
defesaapologetica.blogspot.com

LOGOS — Vincent Cheung

Começaremos com João 1:1: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus”. Esse versículo é uma fonte de controvérsias, mas as controvérsias existem não tanto porque o versículo é especialmente difícil, mas principalmente porque algumas pessoas simplesmente não querem afirmar o que ele significa. Os versículos 1-18 nos relata a identidade da “Palavra”. Por exemplo, o versículo 17 identifica-a com “Jesus Cristo”. Assim, o prólogo de João nos dá muita informação para uma cristologia bíblica.

A “Palavra” no grego é logos, e não devemos deixar o versículo 1 sem alguma menção da doutrina do logos. [...]

Agora, Heráclito de Éfeso (530-470 a.C.) argumentou que a natureza está constantemente mudando. Sua famosa ilustração contende que um homem não pode parar no mesmo rio duas vezes, visto que a água e o leito do rio estão constantemente se movendo e mudando. Em adição, o próprio homem está constantemente mudando também, de forma que quando ele parar num rio pela segunda vez, ele já será diferente do homem que era quando parou no rio pela primeira vez. 

Mas se tudo muda constantemente, então nada realmente “existe”. Imagine que um escultor trabalhe uma peça de barro numa aparência de um cachorro, mas antes de você dizer o seu nome ou até mesmo decidir o que está em sua mente, o objeto muda num carro, então num edifício, e então num pote. De fato, a aparência do objeto muda constantemente de forma que nunca há alguma coisa definida e reconhecível em qualquer ponto no tempo. Se isso é verdade, então você ainda pode pelo menos chamá-lo de barro; contudo, e se a substância do objeto também mudar constantemente? O barro muda em bronze, então em ferro, então em gelo, e então em ouro. Ele muda constantemente de forma que não é nenhuma substância definida em qualquer ponto no tempo.

Isto é, o objeto não é nenhuma “coisa” em nenhum ponto no tempo. Mas se algo não é alguma coisa, então ele é nada, e se é nada, então não pode ser conhecido. Portanto, o conhecimento depende da imutabilidade. Assim, Heráclito disse que há um logos, uma lei ou princípio, que não muda. Ele é “um agente racional e bom, cuja atividade parece como a ordem da Natureza”.[38] Sem isso tudo seria um caos, e a natureza seria ininteligível.

Mais tarde, o logos é tomado pelo Estoicismo, uma escola de pensamento fundada por Zeno de Cituim (aproximadamente 300 a.C.). Os estóicos foram mais ideologicamente diversos do que seus contemporâneos epicureus, e Paulo confrontou ambos os grupos quando ele esteve em Atenas (Atos 17:18). Em todo caso, o Estoicismo considerou o logos como um princípio da razão divina, e o logoi spermatikos, como as sementes e as fagulhas do fogo divino, governa o desenvolvimento de todo objeto na natureza. Filo (20 a.C. — 40 d.C.) foi um contemporâneo de Cristo. Esse filósofo judeu helenista de Alexandria teve uma doutrina do logos mais desenvolvida que pareceu fazer a Palavra ser “nada mais do que a faculdade de razão em Deus”.[39] Contudo, vários pontos de inconsistência fazem com que seja difícil especificar a natureza exata do logos de Filo. Embora ele seja representado de formas variadas em seus escritos, intérpretes entendem que seu propósito primário é “cobrir o abismo entre a deidade transcendente e o mundo inferior e servir como a lei unificadora do universo, o fundamento de sua ordem e racionalidade”.[40]

No tempo em que o apóstolo João escreveu seu Evangelho, a palavra logos tinha sido investida com muito pano de fundo e significados filosóficos. Embora haja algumas similaridades entre João e os filósofos gregos em como eles usaram o termo, sugerir que o logos de João tenha “qualquer conexão equivalente à dependência doutrinária”[41] dos filósofos, seria mostrar um mal-entendimento tantos do apóstolo como dos filósofos. Por exemplo, Heráclito era como os filósofos milesianos, e os estóicos se apegaram a uma física materialística; suas visões do logos se encaixavam em seus próprios sistemas, que são incompatíveis com a cosmovisão bíblica.

O logos de Filo é também incompatível com a cristologia de João. Quando João refere-se à Palavra, ou logos, ele está pensando num ser divino pessoal que define e exibe racionalidade, e não a um princípio metafísico não-pessoal que define e exibe racionalidade. Por outro lado, quando Filo refere-se ao seu logos em termos pessoais, ele o faz de num sentido metafórico.

Os filósofos gregos nunca consideravam esses princípios de racionalidade como tendo tomado sobre si mesmo atributos humanos, como a doutrina da encarnação afirma: “A Palavra tornou-se carne e viveu entre nós. Vimos a sua glória, glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e de verdade” (João 1:14). Um mediador epistemológico e soteriológico que é tanto plenamente Deus como plenamente homem (1 Timóteo 2:5) estava longe do pensamento deles. Portanto, Kittel conclui que: “Desde o princípio o logos do Novo Testamento é estranho ao pensamento grego”.[42]

Todavia, João escolhe uma palavra que seus leitores possam reconhecer, e seu significado pretendido tem alguma semelhança ao uso não-bíblico. Realmente, o logos bíblico tem muito a ver com lógica, metafísica, epistemologia e ética. O logos bíblico endereça essas e outras questões últimas, mas em contraste com as visões não-bíblicas do logos, a doutrina bíblica é baseada na revelação divina e não na especulação humana. O ensino de João sobre o logos divino fornece a estrutura e o conteúdo de uma cosmovisão bíblica completa.

Novamente, João 1:1 diz: “No princípio era aquele que é a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus”. Embora palavra seja uma tradução aceitável para logos, proposição, sentença, fala, argumento, discurso, lógica e várias outras palavras que também são satisfatórias, contudo, se levarmos em contra o pano de fundo teológico e filosófico de logos, a melhor tradução seria Palavra, Sabedoria e Razão em letra maiúscula. Atribuir tal alta visão à “Palavra” ou “Razão” é repugnante para o pensamento anti-inteclualístico. O romancista alemão Goethe escreve em Fausto:

     Está escrito, “No princípio era a Palavra”.
     Eu paro, para perguntar o que é inferido aqui.
     A Palavra eu não posso supremamente alcançar:
     Uma nova tradução tentarei.
     Eu leio, se pelo espírito sou ensinado,
     Esse sentido: “No princípio era o Pensamento”.
     Essa abertura eu preciso considerar novamente,
     Ou o sentido pode sofrer de uma rápida caneta.
     O Pensamento cria, opera e governa a hora?
     Há uma melhor: “No princípio era o Poder”.
     Todavia, embora a caneta seja urgida com dedos desejosos,
     Um senso de dúvida e indecisão hesita.
     O espírito chega a me guiar em minha necessidade,
     Eu escrevo: “No princípio era o Feito”.[43]

Sem traçar as influências filosóficas implícitas na passagem, podemos notar que ela não é realmente uma tradução do versículo bíblico, mas uma expressão de preconceito contra a visão cristã do universo. Goethe tem pouca preocupação sobre o que o versículo realmente diz, mas procura se opor ao intelectualismo de João. No princípio era a Palavra ou o Pensamento, como as traduções mais diretas indicariam, então é esse princípio divino e pessoal de razão que criou e até agora governa o universo, e a teologia deve ser totalmente intelectual e racional.

Como mencionado, “Razão”, “Sabedoria” e “Palavra” são todas traduções aceitáveis de logos. Contudo, enquanto as duas primeiras são auto-explicativas, a terceira demanda uma explicação. O ponto principal é que “Palavra” implica a auto-expressão de uma pessoa, especialmente auto-expressão intelectual. Isso se encaixa com a cristologia do Novo Testamento, que diz que Cristo “é a imagem do Deus invisível” (Colossenses 1:15), e que “O Filho é o resplendor da glória de Deus e a expressão exata do seu ser” (Hebreus 1:3). Se guardarmos em mente que essa “Palavra” é uma pessoa, então essa tradução preserva a personificação do logos, bem como o significado de razão e sabedoria inerente nela.

A expressão “No princípio” é recordativa de Gênesis 1:1, indicando que a Palavra teve um papel na criação. Veremos que esse papel está no versículo 3. Então, a expressão “A Palavra estava com Deus”, transmite uma porção importante de informação que, juntamente com a próxima frase no versículo 1, começa a revelar um retrato da Trindade.

A palavra traduzida por “com” é pros. Que a Palavra, ou Cristo, está com Deus indica que ele é distinguível de Deus. Alguns exemplos de pros incluem os seguintes: “Não estão aqui
conosco as suas irmãs?” (Marcos 6:3); “Todos os dias eu estive com vocês” (Marcos 14:49); “Gostaria de mantê-lo comigo” (Filemom 13); “A vida se manifestou; nós a vimos e dela testemunhamos, e proclamamos a vocês a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada” (1 João 1:2).

O exemplo final refere-se a Cristo e novamente implica que ele não é idêntico ao Pai, mas ao mesmo tempo tem uma relação definida com o Pai. Com algumas exceções, a palavra “Deus” (ou theos no grego) refere-se ao Pai no Novo Testamento, e, portanto, Cristo não é idêntico a “Deus” o Pai. Contudo, que Cristo não é idêntico ao Pai não significa que Cristo não seja Deus. João escreve “Ele estava com Deus no princípio” (v. 2), o que já implica sua deidade. Mas mais explicita é a terceira cláusula no versículo 1, que diz, “a Palavra era Deus”.

Essa cláusula em João 1:1 tem sido a fonte de muita disputa e controvérsia. É uma frase que “os ignorantes e instáveis torcem, como também o fazem com as demais Escrituras, para a
própria destruição deles” (2 Pedro 3:16). Desejando negar a deidade de Cristo ou a Trindade, algumas pessoas têm observado que o theos em theos en ho logos carece do artigo definido (como em “o” Deus), e assim, indica meramente que Cristo tem a qualidade de ser divino, e não que ele seja Deus. Isto é, eles dizem que Cristo é como Deus, mas ele não é Deus em si mesmo. Mas isso é uma má-representação.

Visto que o artigo (grego: ho) precede logos, ele faz da “Palavra” o sujeito. Que “theos” siga imediatamente após a conjunção “e” (kai) mostra que ele recebe a ênfase. Tivesse um artigo
precedendo tanto theos como logos, a frase teria completamente identificado a “Palavra” com “Deus” (theos), o que seria inconsistente com a doutrina da Trindade que João e outros escritores do Novo Testamento afirmaram. Isto é, se João está aqui afirmando a doutrina da Trindade, então ter um artigo antes de theo faria com que João dissesse algo que ele não deseja dizer. A estrutura gramatical da cláusula demanda a tradução: “A Palavra era Deus”. A REB traduz acuradamente o seu significado dizendo: “O que Deus era, a Palavra era”. Portanto, a cláusula como está escrita afirma a deidade de Cristo, e ao mesmo tempo preserva a doutrina da Trindade.

A expressão “No princípio era a Palavra” ensina a pré-existência de Cristo. Então, a expressão “A Palavra estava com Deus”, implica uma relação intima entre Cristo e Deus, sem identificar os dois. Após isso, a expressão “A Palavra era Deus” nos mostra que embora Cristo não seja idêntico a “Deus” (o Pai), Ele é igual ao Pai, e isso é consistente com a doutrina da Trindade. Portanto, seitas e heresias anti-trinitarianas não podem usar esse versículo para argumentar contra as doutrinas bíblicas da Trindade e da deidade de Cristo, visto que o versículo está precisamente da forma como ele deveria estar se João afirma ambas as doutrinas.

NOTAS DE RODAPÉ:

[38] Gordon H. Clark, Ancient Philosophy; The Trinity Foundation, 1997 (original: 1941); p. 37.

[39] Gordon H. Clark, Thales to Dewey; The Trinity Foundation, 2000 (original 1957); p. 165.

[40] The Cambridge Dictionary of Philosophy, Second Edition; New York: Cambridge University Press, 1999;

[41] Cyclopedia of Biblical, Theologica, and Ecclesiastical Literature, Vol. V; Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981 (original: 1867-1887); p. 492.

[42] Theological Dictionary of the New Testament, Vol. IV; Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company, 1999 (original: 1967); p. 91

[43] Great Books of the Western World, Vol. 45; Encyclopedia Britannica, Inc., 1996; p. 12.

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Extraído de:
CHEUNG, Vincent. Questões Últimas. ed. 2004. pp. 28, 30-33.

Traduzido por:
Felipe Sabino, em agosto de 2005.