O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam – isto proclamamos a respeito da Palavra da vida. A vida se manifestou; nós a vimos e dela testemunhamos, e proclamamos a vocês a vida eterna, que estava com o Pai e nos foi manifestada. Nós lhes proclamamos o que vimos e ouvimos para que vocês também tenham comunhão conosco. Nossa comunhão é com o Pai e com seu Filho Jesus Cristo (1 João 1.1-3).
Nosso texto é frequentemente citado em debates sobre epistemologia, ou como se obtém conhecimento, para apoiar o empirismo, isto é, a ideia que as sensações são basicamente confiáveis e que o conhecimento é obtido ou derivado das nossas sensações. Se o conteúdo e a veracidade do evangelho dependem do testemunho ocular dos apóstolos, a negação da confiabilidade das sensações é também uma negação da confiabilidade da pregação apostólica, e assim, uma negação da confiabilidade das Escrituras.
O argumento é um tiro pela culatra. A Bíblia contém muitos exemplos demonstrando que os sentidos são falíveis e não confiáveis. Eliseu tirou proveito disso e, pelo poder de Deus, venceu uma batalha contra os moabitas (2 Reis 3.22-23). Então, na ocasião em que Deus falou dos céus respondendo à oração de Jesus, alguns da multidão pensaram que havia trovejado, enquanto outros, que se tratara de um anjo (João 12.28-29). A reivindicação da própria Bíblia é que ela é verdadeira porque o próprio Deus soprou as palavras ― ela é produto de inspiração divina. Quando é dito que um testemunho ocular registrado na Bíblia é verdadeiro, entende-se que ele é verdadeiro não porque se trata de um testemunho ocular, mas porque o Espírito Santo atesta que essa sensação ou testemunho em particular é verdadeiro.
Assim, alegar que a própria Bíblia depende da confiabilidade das sensações porque se refere ao testemunho ocular é comprometer a inspiração, sendo de fato uma negação da inspiração. O assunto é sério. Esses que promovem e apoiam um argumento como esse estão pecando sobre o Espírito Santo. Que eles deixem de debater epistemologia, e demonstrem arrependimento com grande temor e lamentação sincera.
Esta é uma resposta ampla a qualquer argumento que apela aos registros de sensação na Bíblia para apoiar a confiabilidade das sensações. Mas quando alguém apela ao nosso texto para afirmar um argumento como esse, a implicação é ainda mais alarmante.
Considere a interpretação que o empirista precisa dar à passagem para que um apelo a ela seja relevante à sua posição. Com base neste texto, seria irrelevante ele meramente afirmar que ocorrem sensações, ou que João viu algo, tocou em algo, sentiu algo. Antes, para que um apelo à passagem seja relevante à sua posição, o empirista precisa afirmar com base no texto que a visão de João tem algo a ver com ele saber o que viu, e que o toque de João tem algo a ver com ele saber no que tocou. O que João viu? No que João tocou? A Palavra da Vida, que a Bíblia e todos os cristãos afirmam ser Deus, ser divino.
O problema é que Deus sempre insistiu que ele é invisível e sem forma (Deuteronômio 4.12,15; 1 Timóteo 1.16-17). Portanto, afirmar que uma pessoa pode ver o corpo de Jesus e por esta visão detectar ou inferir que Jesus é a Palavra da Vida, mesmo “o que era desde o princípio” (v. 1), equivale a negar a espiritualidade e a transcendência de Deus. E negar a espiritualidade e a transcendência de Deus é não só rejeitar toda a religião da Bíblia, como também deixar a própria encarnação sem sentido (se a Palavra era realmente não espiritual e não transcendente, como ela poderia ser uma encarnação para possuir um corpo?), que é justamente o que João tenta defender em sua carta.
Portanto, um apelo à passagem para apoiar o empirismo é ao mesmo tempo um repúdio à religião cristã e um repúdio à confissão que a pessoa faz de Deus e do Senhor Jesus Cristo. O apelo sugere algo muito sinistro na pessoa. É uma blasfêmia e um suicídio espiritual. Se o argumento for levado a sério, devemos concluir que a pessoa não é cristã. Praticando a paciência de Cristo, devemos aceitar que uma pessoa assim é, quem sabe, apenas estúpida e descuidada, e não tem consciência de sua blasfêmia. Acima de tudo, sendo competente em sua forma de pensar, ela não apoiaria o empirismo.
Para o empirista, para a pessoa que afirma que as sensações são confiáveis e que delas pode vir conhecimento, nós pedimos encarecidamente: “Por favor, se você precisa manter essa filosofia falsa e absurda, se você precisa enganar a si mesmo e a outros, pelo menos não blasfeme da essência divina e não negue a natureza de Deus e a deidade de Cristo, para que você não pereça no fogo do inferno junto dos réprobos”. Se mesmo depois que as implicações tenham sido explicadas ele insiste que o texto endossa a confiabilidade das sensações, ele deveria ser julgado perante a igreja e excomungado.
A verdadeira interpretação da passagem é simples e óbvia a partir de sua linguagem. Se por ver e tocar você não pode nem mesmo dizer se sou um funileiro ou um pregador, como pode dizer pelos seus sentidos que um homem é a Palavra da Vida encarnada, o Eterno? João não diz que por ver e tocar em Jesus, ele aprendeu que Jesus era a Palavra, mas que o que ele viu e tocou era a Palavra. Ele está dizendo ao leitor o que foi que ele viu e tocou, e não que o que ele viu e tocou ele aprendeu pela sua visão e toque.
Suponha que eu diga: “O homem que acabei de cumprimentar na igreja é o Governador”. Com isto eu não estaria sugerindo que, por cumprimentá-lo, poderia dizer que ele é o Governador. Eu estaria apenas dizendo a você quem eu cumprimentei, que o Governador estava na igreja, que eu estava próximo dele e que tive um contato direto com ele. Da mesma forma, João não diz que por ver e tocar no corpo da sua encarnação, ele deduziu que Jesus era a Palavra, mas que por acaso o que ele viu e tocou era a Palavra, o próprio Deus. Ao chamar a atenção a isso ele pretende defender a encarnação, que realmente aconteceu: “todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne procede de Deus; mas todo espírito que não confessa Jesus não procede de Deus” (1 João 4.2-3). Ele faz isso sem negar a natureza de Deus e sem fazer de si mesmo um tolo completo.
A Palavra, Jesus Cristo, que é Deus, veio em carne para salvar o seu povo, para que crendo nele, tenhamos comunhão com ele e com seu Pai. Ter fé nele é mais do que reconhecer o seu nome como mero som ou símbolo; é compreender e afirmar a natureza de sua pessoa e sua obra. É necessário confessar a sua deidade, a sua essência espiritual e transcendente. Ele era Deus em carne e osso, e porque era Deus, a pessoa não pode dizer que ele era Deus por sensações associadas à sua carne. Por esta razão, o apelo do empirista ao nosso texto implica uma rejeição completa da fé cristã. Em vez de vencer o debate na epistemologia, ele perdeu a confissão de fé que é necessária para a salvação.
Tradução: Marcelo Herberts
Via: Monergismo
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