domingo, 15 de julho de 2018

A POSSIBILIDADE DA TEOLOGIA – Vincent Cheung

Antes da construção de um sistema teológico, é necessário estabelecer que o conhecimento teológico é possível. "Deus é Espírito" (João 4:24) – Ele transcende a existência espaço-temporal do homem. Assim, a questão é se o homem pode conhecer alguma coisa sobre Deus, ou como o homem pode saber algo acerca dele. A resposta da Bíblia é que é possível ao homem ter conhecimento sobre Deus porque Deus se revelou ao homem.

A Bíblia ensina que o universo exibe a glória de Deus. A magnitude e a excelência das coisas que Deus criou oferecem um testemunho de seu poder e sabedoria:

          Os céus estão declarando a glória de Deus. A vasta expansão mostra o seu trabalho manual. Um dia “fala” disso a outro dia; uma noite mostra conhecimento a outra noite. Não há discursos, não há palavras; Nenhum som é ouvido delas. Sua “voz” estende-se por toda a terra, suas palavras até os confins do mundo (Salmo 19:1-3)[1]

No entanto, o homem não percebe diretamente este testemunho, e ele não infere logicamente informações sobre Deus a partir dele. Como Paulo  escreve:

          Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por meio da sabedoria humana, agradou a Deus salvar aqueles que crêem por meio da loucura da pregação. (1 Corintios 1:21)

Deus fez questão de impedir que os não cristãos o conhecessem por meio de sua própria sabedoria.

Portanto, embora o testemunho da criação seja forte e evidente, o homem não pode adquirir conhecimento sobre Deus por meio de uma observação do mundo. Isso não significa que alguns homens não tenham um conceito de Deus em suas mentes. De fato, a Bíblia ensina que todo homem conhece a Deus, mas esse conhecimento não vem da observação. Antes, Paulo escreve que ele foi "escrito" na mente do homem – é um conhecimento inato:

          De fato, quando os gentios, que não têm a lei, praticam naturalmente o que ela ordena, tornam-se lei para si mesmos, embora não possuam a lei; pois mostram que as exigências da lei estão gravadas em seus corações. Disso dão testemunho também a consciência e os pensamentos deles, ora acusando-os, ora defendendo-os. (Romanos 2:14-15)[2]

Os teólogos chamam o testemunho da criação e o conhecimento inato na mente do homem  REVELAÇÃO GERAL DE DEUS. [3] Embora todos os homens saibam sobre Deus dessa maneira, isso não significa que todos os homens conscientemente o reconheçam. De fato, desde  que todos os homens são pecadores, eles se recusam a reconhecer esse Deus que eles conhecem, mas tentam suprimir a verdade:

          Portanto, a ira de Deus é revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade pela injustiça, pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas, de forma que tais homens são indesculpáveis; porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas os seus pensamentos tornaram-se fúteis e os seus corações insensatos se obscureceram. (Romanos 1:18-21)[4]

No entanto, esse conhecimento é indestrutível e inegável, de modo que ele aparece em formas distorcidas nas religiões, filosofias e princípios éticos não cristãos.

Assim, Deus revelou sua existência, atributos e algumas de suas exigências morais a todas as pessoas, incluindo essas informações na mente humana. Esse conhecimento é inato e não é derivado do raciocínio a partir da sensação. O homem não infere do que ele observa na natureza que deve haver um Deus; antes, ele conhece o Deus da Bíblia antes de ter acesso a dados empíricos. A interação com a criação, incluindo o ato de observação, estimula a mente humana a recordar esse conhecimento inato, que foi suprimido pelo pecado.

Toda pessoa tem um conhecimento inato de Deus, e para qualquer lugar que ela olhe a natureza o lembra disso. Todo seu pensamento e toda sua experiência testificam a existência e os atributos de Deus; a evidência é inescapável. Portanto, aqueles que negam a existência de Deus estão suprimindo a verdade por causa de sua maldade e rebelião.  A revelação geral de Deus de sua existência e atributos através de sua criação – o conhecimento inato no homem e as características do universo – tornam sem desculpa aqueles que negam que Ele é e o que Ele é, e assim eles são justamente condenados.

Embora cada pessoa tenha um conhecimento inato da existência e atributos de Deus, e o universo sirva como um lembrete constante, a revelação geral exclui muita informação sobre Deus e sua criação, e em particular não contém informação necessária para a salvação – ela não contém o evangelho. Assim, Deus revelou o que Ele decidiu nos ensinar por revelação verbal, isto é, a Escritura. Em outras palavras, ele fala conosco e nos diz o que ele quer que saibamos:

          As coisas encobertas pertencem ao Senhor, ao nosso Deus, mas as reveladas pertencem a nós e aos nossos filhos para sempre, para que sigamos todas as palavras desta lei.

      A teologia é possível porque Deus se revelou a nós através das palavras da Bíblia. Essa é a sua REVELAÇÃO ESPECIAL. Ela contém informações ricas e precisas sobre Deus e as coisas que Ele decidiu que deveríamos aprender. É da Bíblia que obtemos conhecimento necessário para a salvação. É da Bíblia que chegamos a conhecer a mensagem sobre Jesus Cristo, que precisamos ser salvos do pecado e do inferno, e como podemos ser salvos através dele:

      Quanto a você, porém, permaneça nas coisas que aprendeu e das quais tem convicção, pois você sabe de quem o aprendeu. Porque desde criança você conhece as sagradas letras, que são capazes de torná-lo sábio para a salvação mediante a fé em Cristo Jesus. ( 2 Timóteo 3:13-15)

É possível ao homem conhecer a Deus por meio de sua revelação, porque Deus fez o homem à sua própria imagem, de modo que há um ponto de contato entre os dois, apesar da transcendência de Deus. Animais e objetos inanimados não podem conhecer a Deus da maneira que o homem pode, mesmo se eles fossem apresentados com sua revelação verbal, uma vez que eles não podem recebê-la e entendê-la.

Deus escolheu revelar informações para nós através da Bíblia – em palavras e não em imagens ou experiências; falar ao invés de mostrar. Sua revelação para nós é de natureza racional e intelectual, e não mística ou empírica. A comunicação verbal é superior porque pode ser precisa, acurada e extensiva. Uma vez que a Bíblia assume essa forma de comunicação, um sistema teológico digno deve ser derivado de proposições bíblicas, e não de uma base não verbal, como sentimentos e experiências religiosas, ou construções irracionais, como as teorias científicas.[5]

Todo sistema de pensamento começa com um primeiro princípio, e nessa base deriva o resto por raciocínio indutivo ou dedutivo, ou uma combinação dos dois. A indução é uma falácia formal, uma vez que devido à forma ou estrutura do processo de raciocínio, a conclusão nunca é um resultado logicamente necessário das premissas. A falácia ocorre quando alguém raciocina a partir de particulares para universais. Agora, o raciocínio com base em dados empíricos requer a indução, uma vez que as sensações são particulares, e toda cosmovisão deve conter conceitos e proposições universais, como homem, carro, vermelho, tamanho e assim por diante. Portanto, a indução e o empirismo são irracionais, e um sistema que coloca qualquer dependência sobre ambos deve inevitavelmente entrar em colapso no ceticismo. O ceticismo é a posição de que o conhecimento é impossível, mas é autocontraditória, pois sustenta que podemos conhecer que não podemos conhecer.

A dedução é a única forma válida de raciocínio. Ela procede a partir das premissas para conclusões por necessidade lógica. No entanto, como o raciocínio dedutivo nunca produz informações que já não estejam implícitas nas premissas, o primeiro princípio de um sistema dedutivo deve conter todas as informações para o resto do sistema. Isso significa que um primeiro princípio que é muito estreito deixará de fornecer um número suficiente de proposições para produzir uma cosmovisão abrangente e coerente, ou um sistema de pensamento capaz de responder a todas as questões necessárias. Assim, o conhecimento é impossível com base na indução, empirismo ou qualquer princípio inicial inadequado.

Mesmo que um primeiro princípio pareça ser suficientemente amplo e conter informações suficientes para construir uma cosmovisão, deve haver justificativa para ele, ou alguma razão para afirmá-lo em detrimento de outro. A justificação para um primeiro princípio não pode vir de uma autoridade superior ou de uma premissa anterior, pois então não seria o primeiro princípio. Uma autoridade ou premissa inferior dentro do sistema não pode justificar o primeiro princípio, uma vez que é sobre este primeiro princípio que essa autoridade ou premissa inferior depende. Portanto, um primeiro princípio de um sistema de pensamento deve ser autoautenticado – ele deve permanecer sob sua própria autoridade.

A Bíblia é a autoridade final do sistema cristão; portanto, nosso primeiro princípio, nosso ponto de partida, ou a base de nosso pensamento, é a própria Bíblia. Isso pode ser expresso por qualquer proposição que represente todo o conteúdo da Bíblia, como "A Bíblia é a verdade" ou "A Bíblia é a palavra de Deus".

Embora argumentos empíricos, indutivos e científicos tenham sido formulados em apoio à revelação bíblica, e, embora pareçam ser fortes, dadas as suposições empíricas, de modo que nenhum não cristão inclinado empiricamente possa refutá-los, o cristão deve considerar esses argumentos como não confiáveis – como  tenho discutido extensivamente em outro lugar – todos os métodos empíricos, indutivos e científicos são irracionais e impedem a descoberta da verdade.[6] Além disso, se dependêssemos de argumentos e procedimentos empíricos para justificar a Bíblia, as suposições empíricas seriam, então, como um juíz da própria palavra de Deus, de modo que a Escritura deixaria de ser a autoridade suprema em nosso sistema. Como Hebreus 6:13 diz: "Quando Deus fez a sua promessa a Abraão, por não haver ninguém superior por quem jurar, jurou por si mesmo". Como Deus possui a autoridade última, não há autoridade superior pela qual se possa declarar a Bíblia como infalível e inerrante.

Dito isso, nem todo sistema que reivindica autoridade divina tem dentro de seu primeiro princípio o conteúdo para justificar a si mesmo. Um texto sagrado pode contradizer a si mesmo e se autodestruir. Outro pode admitir dependência da Bíblia cristã, mas a Bíblia condena todas as outras supostas revelações. Em qualquer caso, a Bíblia é verdadeira, e reivindica exclusividade, então todos os outros sistemas de pensamento devem ser falsos.
Portanto, se alguém afirma uma cosmovisão não cristã – qualquer cosmovisão diferente do cristianismo bíblico – ele deve ao mesmo tempo rejeitar a Bíblia.

Isso gera um conflito entre as duas visões de mundo. Quando isso acontece, o cristão pode ter certeza de que seu sistema de pensamento é impermeável aos ataques de outros, mas o próprio sistema bíblico fornece o conteúdo tanto para a defesa quanto para o ataque. O cristão pode destruir a cosmovisão não cristã questionando os primeiros princípios e as proposições subsidiária do sistema. O primeiro princípio do sistema contradiz a si mesmo? Ele não consegue satisfazer seus próprios requerimentos?[7] O sistema desmorona porque assume a confiabilidade da sensação, da indução e do método científico? Suas proposições subsidiárias contradizem umas às outras? Ela toma emprestadas premissas cristãs não dedutíveis de seu próprio princípio primeiro? O sistema fornece respostas coerentes para as questões últimas e necessárias, tais como as relativas à epistemologia, metafísica e ética?[8]

O primeiro princípio, o ponto de partida, ou a fundação do sistema cristão é a Bíblia. A partir desse primeiro princípio, o teólogo constrói um sistema abrangente de pensamento. Na medida em que seu raciocínio estiver correto, toda parte do sistema é deduzida por necessidade lógica do primeiro princípio infalível, e é, portanto, igualmente infalível.
E uma vez que a Bíblia é a revelação verbal de Deus, que exige nossa adoração e comanda nossa consciência, um sistema de teologia validamente deduzido da revelação é autoritativo e obrigatório. Portanto, na medida em que este livro for fiel em apresentar o que a Escritura ensina, ele representa o que os cristãos se têm se comprometido a acreditar e no que todos os homens devem acreditar, porque ele representa verdades universais e objetivas que Deus revelou.

NOTAS DE RODAPÉ:

[1] Robert L. Reymond, A New Systematic Theology ofthe Christian Faith; Nashville, Tennessee: Thomas Nelson, Inc.; p. 396.
A NVI lê: "Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos. Um dia fala disso a outro dia; uma noite o revela a outra noite. Sem discurso nem palavras, não se ouve a sua voz."

[2]Quando então os gentios, não tendo Lei, fazem naturalmente o que é prescrito pela Lei, eles, não tendo Lei, para si mesmo são Lei; eles mostram a obra da lei gravada em seus corações, dando disto testemunho sua consciência e seus pensamentos...” (v. 14-15, Bíblia de Jerusalém).

[3] Isso também é chamado de revelação natural – a revelação de Deus de si mesmo através da natureza, ou a marca de Deus em sua criação. Um sistema de teologia alegadamente derivado da revelação geral ou natural é chamado de teologia natural. Para expressar o ensino bíblico em termos teológicos, diríamos que há uma revelação geral ou natural (Salmos 19: 1-3), mas é impossível derivar uma teologia natural com base nessa revelação (1
Coríntios 1:21).

[4]  “Sua realidade invisível — seu eterno poder e sua divindade — tornou-se inteligível, desde a criação do mundo, através das criaturas, de sorte que não têm desculpa” (v. 20, Bíblia de Jerusalém).

[5] A ciência é irracional porque comete as falácias do empirismo, da indução e da afirmação do consequente (experimentação).

[6] Veja Vincent Cheung, Ultimate Questions, Presuppositional Confrontations, e Captive to Reason.

[7] Por exemplo, um princípio que afirme que toda afirmação deve ser verificada empiricamente não pode ser verificado empiricamente. O princípio destrói a sí mesmo.

[8] Para instruções sobre filosofia e apologética bíblicas, veja Vincent Cheung, Ultimate Questions, Presuppositional Confrontations, Apologetics in Conversation, e Captive to Reason.

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Extraído de:
CHEUNG, Vincent. SYSTEMATIC THEOLOGY: A Possibilidade da Teologia. ed. 2010. pp. 5-9.

Traduzido por:
Cristiano Lima, em julho de 2018.

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