sábado, 8 de dezembro de 2018

NECESSIDADE E CRITÉRIOS PARA A SELEÇÃO DE UM PRIMEIRO PRINCÍPIO ADEQUADO — Vincent Cheung

❝ Toda pessoa tem uma cosmovisão. Uma cosmovisão consiste em uma rede de proposições inter-relacionadas, cuja soma forma "uma concepção abrangente ou uma compreensão do mundo"[23]. Uma dada cosmovisão pode ser chamada de "religião" ou "filosofia" por causa de seu conteúdo específico, mas é, no entanto, uma cosmovisão. Por cosmovisão, nos referimos a qualquer religião, filosofia ou sistema de pensamento.

Toda cosmovisão tem um ponto de partida ou primeiro princípio do qual o resto do sistema é derivado. Algumas pessoas afirmam que uma cosmovisão pode ser uma rede de proposições mutuamente dependentes sem um primeiro princípio. No entanto, mesmo que um milhão de mentirosos ateste um ao outro, todos eles ainda são mentirosos. Pelo menos um homem confiável teria que testemunhar por eles. Mas se todos eles são mentirosos, um homem confiável não testifica por eles os atende e sua credibilidade se desfaz. Do mesmo modo, uma rede de proposições ainda precisaria de um primeiro princípio que sustentasse a todos. Um primeiro princípio verdadeiro não produziria uma rede de falsas proposições, e uma rede de falsas proposições não seria apoiada por um verdadeiro primeiro princípio. Portanto, o primeiro princípio continua sendo a questão crucial.

Em uma rede de proposições, algumas proposições são mais centrais para a rede, cuja destruição também aniquilaria as proposições que são mais remotas. Mas mesmo as reivindicações mais centrais requerem justificação, e uma cosmovisão em que as proposições dependam umas das outras de uma maneira que careça de um primeiro princípio é, em última análise, exposta como não tendo qualquer justificação. A afirmação de que uma cosmovisão pode ser uma teia de proposições mutuamente dependentes sem a necessidade de um primeiro princípio é realmente uma tentativa de esconder o fato de que todas as proposições em tal teia carecem de justificação.

Portanto, permanece que toda cosmovisão requer um primeiro princípio ou autoridade última. Sendo primeiro ou último, tal princípio não pode ser justificado por nenhuma autoridade anterior ou maior; caso contrário, não seria o primeiro nem o último. Isso significa que o primeiro princípio deve possuir o conteúdo para justificar-se. Por exemplo, a proposição "Todo conhecimento vem da experiência sensorial", falha em ser um primeiro princípio sobre o qual uma cosmovisão pode ser construída. Isso porque, se todo conhecimento vem da experiência sensorial, então este primeiro princípio proposto também deve ser conhecido apenas pela experiência sensorial, mas a confiabilidade da experiência sensorial não foi estabelecida. Assim, o princípio gera um círculo vicioso e se autodestrói. Não importa o que possa ser validamente deduzido de tal princípio – se o sistema não pode sequer começar, o que decorre do princípio é sem justificação.

Também é impossível começar uma cosmovisão com um primeiro princípio autocontraditório. Isso ocorre porque as contradições são ininteligíveis e sem sentido. A lei da contradição afirma que "A não é não-A", ou que algo não pode ser verdade e não ser verdade ao mesmo tempo e no mesmo sentido. Alguém precisa assumir essa lei mesmo na tentativa de rejeitá-la; caso contrário, ele não pode nem distinguir entre aceitar e rejeitar essa lei. Mas uma vez que ele a assume, ele não pode mais rejeitá-la, já que ele já a assumiu. Se dissermos que a verdade pode ser contraditória, então também podemos dizer que a verdade não pode ser contraditória, uma vez que abandonamos a distinção entre pode e não pode. Se não afirmamos a lei da contradição, os cães são gatos, os elefantes são ratos, "vejo Jane correr" pode significar "eu sou casado", e "eu rejeito a lei da contradição" pode significar "eu afirmo a lei da contradição" ou mesmo "eu sou um idiota". Se não é verdade que "A não é não-A", qualquer coisa pode significar qualquer coisa e nada ao mesmo tempo, e nada é inteligível.

Visto que nenhum primeiro princípio adequado pode ser autocontraditório, o ceticismo é impossível, porque é autocontraditório. Quando usado no sentido filosófico, um "cético" refere-se àquele que afirma que "nenhum conhecimento é possível ... ou que não há evidência suficiente ou adequada para dizer se algum conhecimento é possível".[24] Ambas as expressões de ceticismo são autocontraditórias – uma afirma saber que não se pode saber nada, e a outra afirma saber que não há provas suficientes para saber alguma coisa. Se uma pessoa afirma que não se pode saber se alguém pode saber alguma coisa, então ela ainda está afirmando saber que não se pode saber se alguém pode saber alguma coisa e, portanto, ela se contradiz.

Princípios autocontraditórios são insustentáveis. O ceticismo é autocontraditório e, portanto, insustentável. Isso significa que um primeiro princípio adequado deve garantir a possibilidade de conhecimento.

Além de tornar o conhecimento possível, um primeiro princípio também deve produzir uma quantidade adequada de conhecimento. Para ilustrar, "Meu nome é Vincent", pode ser uma proposição verdadeira, mas não me diz nada sobre a origem do universo, ou se roubar é imoral. Nem sequer me dá o conceito de "origem" ou "moralidade". Além disso, embora possa ser uma proposição verdadeira, como eu sei, em primeiro lugar, que ela é verdadeira? A proposição "Meu nome é Vincent" não prova que meu nome seja realmente Vincent; ela não se justifica. Um primeiro princípio é inadequado se falhar em fornecer informações sobre epistemologia, metafísica e ética, e se falhar em se justificar. 

Por pelo menos as razões acima, um primeiro princípio não pode ser baseado sobre a indução, em que as premissas não levam inevitavelmente à conclusão, como raciocinar de particulares para
universais. Por exemplo, nenhuma quantidade de investigação empírica pode justificar a proposição "Todo ser humano tem um cérebro". Para estabelecer uma proposição geral como essa por meios empíricos, a pessoa deve examinar todo ser humano que já viveu, que agora vive, e como essa é uma proposição sobre os seres humanos, ele também deve examinar cada ser humano que viverá no futuro. Além disso, enquanto ele está examinando os seres humanos em uma parte do mundo, ele deve de alguma forma assegurar que a natureza do homem não tenha mudado naquelas partes do mundo cujos seres humanos ele já estudou.

Além disso, como ele prova que ele sabe que um ser humano tem um cérebro só porque acha que está olhando para ele? Ele deve fornecer justificativa para a alegação de que ele sabe que algo está lá apenas porque acha que está olhando para ele. Mas seria viciosamente circular dizer que ele sabe que algo está lá só porque acha que está olhando para ele, porque o que ele acha que está olhando está realmente lá, e ele sabe que está realmente lá porque acha que está olhando para ele. Somando-se à situação agora já impossível, para provar essa proposição geral sobre os seres humanos por sensação e indução, ele também deve examinar seu próprio cérebro.

Com base na indução, em primeiro lugar, seria impossível definir um ser humano, uma vez que o conceito de ser humano é também um universal. De fato, com base na indução, nunca se pode estabelecer qualquer proposição, muito menos uma proposição universal como "Todos os homens são mortais".

Algumas pessoas tentam resgatar a indução dizendo que, embora ela não possa estabelecer conclusivamente qualquer proposição, pelo menos pode estabelecer uma proposição como provável. Mas isso é tanto enganoso quanto falso. Probabilidade refere-se à "proporção do número de resultados em um conjunto exaustivo de resultados igualmente prováveis ​​que produzem um determinado evento pelo número total de resultados possíveis".[25] Mesmo se admitirmos que os métodos empíricos e indutivos podem descobrir o numerador da fração (embora eu negue que eles possam fazer até mesmo isso), determinar o denominador requer conhecimento de um universal, e a onisciência é frequentemente necessária para estabelecer isto.

Visto que a probabilidade consiste em um numerador e um denominador, uma vez que o denominador é universal e, visto que os métodos empíricos e indutivos não podem conhecer universais, dizer que a indução pode chegar a um conhecimento "provável" é um absurdo. Mesmo à parte de outros problemas insolúveis inerentes ao próprio empirismo, uma epistemologia baseada em um princípio empírico não pode ter sucesso, uma vez que o empirismo depende necessariamente da indução, e a indução é sempre uma falácia formal.

Por outro lado, a dedução produz conclusões que são garantidas como verdadeiras se as premissas forem verdadeiras e se o processo de raciocínio for válido. Embora o racionalismo seja menos popular, ele é um tremendo aperfeiçoamento em relação ao empirismo, porque raciocina usando a dedução em vez de usar métodos empíricos e indutivos. Mas, ainda assim, o racionalismo não cristão não consegue estabelecer uma cosmovisão verdadeira e coerente, e examinaremos brevemente alguns de seus problemas.

O racionalismo seleciona um primeiro princípio (ou como na geometria, começa com um ou mais axiomas) e deduz o resto do sistema a partir dele. Se o primeiro princípio é verdadeiro e o processo de raciocínio dedutivo for válido, então as proposições ou teoremas subsidiários seriam todos verdadeiros por necessidade.

Um problema principal com o racionalismo não revelacional tem a ver com como ele seleciona um primeiro princípio.[26] Se o primeiro princípio é autocontraditório, então é claro que deve ser rejeitado. Mas mesmo que o princípio não seja autocontraditório, também deve ser autojustificador para evitar a acusação de ser arbitrário. Embora eu diria que apenas o primeiro princípio bíblico é autojustificador, mesmo que um primeiro princípio não bíblico seja autoconsistente e autojustificador, ele deve ser amplo o suficiente para tornar o conhecimento possível. Deve conter conteúdo suficiente para que se possa deduzir uma visão de mundo adequada. Assim, postular a proposição, "Meu nome é Vincent", como o primeiro princípio em uma cosmovisão racionalista resultaria nos fracassos mencionados anteriormente.

Ainda outro problema com o racionalismo não revelacional é que existem várias escolas de sistemas racionalistas, e seus pontos de partida são todos diferentes e incompatíveis. Qual deles está correto? Uma cosmovisão racionalista com um primeiro princípio arbitrário não pode ter sucesso. Embora a abordagem dedutiva racionalista seja muito superior à abordagem empírica indutiva, ela também resulta em fracasso. Uma vez que em algum momento uma pessoa usa uma das abordagens, ela inevitavelmente introduz os problemas dessa abordagem em sua cosmovisão, uma mistura de racionalismo e empirismo só combinaria as falhas fatais de ambos os métodos.

Então, as proposições dentro de uma cosmovisão não devem se contradizer. Por exemplo, o primeiro princípio de uma cosmovisão não deve produzir uma proposição em ética que contradiga outra proposição em metafísica, em política ou em economia.

Por esse ponto, tendo examinado as condições para um primeiro princípio adequado, os problemas do empirismo e da indução, e os problemas do racionalismo não bíblico, já temos destruído efetivamente todos os sistemas não cristãos existentes e possíveis. Eles simplesmente não podem satisfazer todos os requisitos que listamos. Isso inclui o islamismo, o mormonismo e outras religiões não cristãs que alegam ser fundadas na revelação, uma vez que, após exame, se verá que suas supostas revelações não podem satisfazer as condições. ❞

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Extraído de:
CHEUNG, Vincent. Systematic Theology. ed. 2010.

Traduzido por:
Cristiano Lima.

domingo, 2 de dezembro de 2018

O ARGUMENTO PRESSUPOSICIONALISTA — Vincent Cheung

O ARGUMENTO PRESSUPOSICIONALISTA é um método direto e positivo para promover a verdade e a necessidade da fé cristã. É em essência uma forma de dogmatismo.

A palavra "dogmático" carrega conotações desfavoráveis ​​no discurso coloquial. Um dicionário define "dogmatismo" como "positividade na afirmação de opinião, especialmente quando injustificável ou arrogante; um ponto de vista ou sistema de ideias baseado em premissas insuficientemente examinadas"; e um "dogma" é "um ponto de vista ou princípio posto como autoritário sem motivos adequados."[17] Embora essas definições reflitam o uso não acadêmico popular, queremos dizer algo muito diferente.
"Dogmático" pode significar simplesmente "doutrinário"[18] ou "baseado em princípios a priori, não em indução. "[19] Ambas as definições são aplicáveis ​​em nosso contexto. Os sinônimos dessa palavra incluem "ditatorial, autoritativo, magisterial" e, em outro sentido, "dedutivo, a priori, dedutível, derivável ​​e fundamentado".[20] A Bíblia cristã é uma revelação de Deus, e como Deus fala por uma autoridade absoluta e "ditatorial"[21], sua revelação é a precondição de todo pensamento e vida, e o conhecimento vem de deduções válidas dela.

Em God and Reason, Ed. L. Miller explica o significado de dogmatismo como uma posição filosófica:

     Uma das características da tradição judaico-cristã é sua crença em uma autorrevelação divina: Deus intervém na história humana e fala; Ele desvenda a Si mesmo em uma “revelação especial”. E o conhecimento de Deus extraído de Sua revelação é um exemplo de teologia revelada. Tal teologia é algumas vezes chamada de “dogmática” (no melhor sentido da palavra) ou “confessional”, porque busca elucidar os artigos de fé (dogmas) divinamente concedidos, que toma como seus dados fundamentais e inegociáveis. O teólogo dogmático não é diferente do matemático, pois começa com certas suposições, ainda que em tal caso suposições reveladas; o sistema é limitado pela revelação, é completo e é oferecido como um package deal [grupo de coisas juntamente agrupadas, e que devem ser reunidas sempre dessa forma].[22]

O sistema cristão toma a revelação bíblica como seu primeiro princípio autoautenticador. Por autoautenticador, não estamos nos referindo a que a Bíblia se confirma em nossa experiência. Ela pode muito bem ser consistente com nossa experiência, mas se considerarmos a Bíblia verdadeira porque é consistente com nossa experiência, ou porque é consistente com nossa interpretação de nossa experiência, então ela não seria autoautenticadora. Antes, nossa experiência, ou o padrão ou princípio pelo qual interpretamos nossa experiência, seria o verdadeiro primeiro princípio. Tampouco estamos nos referindo ao testemunho interior do Espírito Santo de que a Bíblia é uma revelação de Deus, embora isso realmente aconteça com aqueles que foram escolhidos para a salvação. Pelo contrário, por autoautenticadora, queremos dizer que a Bíblia verifica e se apóia pela excelência e suficiência de seu próprio conteúdo, e que não precisa depender de premissas externas a si mesma.

A partir desse primeiro princípio da revelação bíblica, o restante do sistema segue por necessidade através de deduções válidas.

Uma vez que o primeiro princípio se confirma como verdadeiro, todas as proposições validamente deduzidas dele também são verdadeiras. Uma vez que a revelação bíblica condena todos os outros sistemas de pensamento, e tudo o que ela diz é verdade, a fé cristã é, portanto, o único sistema de pensamento verdadeiro e o padrão pelo qual toda proposição é julgada. 

O método é semelhante ao racionalismo, mas há diferenças importantes. Embora o uso da dedução no racionalismo não cristão a torne superior às filosofias não cristãs que favorecem a indução, a sensação e a experimentação, ela falha como as outras porque seus primeiros princípios são arbitrários e injustificados. Por outro lado, a Bíblia possui o conteúdo para justificar a si mesma como o primeiro princípio infalível da fé cristã.

Seja como for, o dogmatismo é talvez um nome melhor do que o racionalismo despretensioso, já que transmite mais prontamente a ideia de que a cosmovisão bíblica consiste, nas palavras de Miller, de dados revelados autocontidos oferecidos como um pacote.

Alternativamente, podemos acrescentar a qualificação necessária e chamar o método de, racionalismo bíblico, fundacionalismo bíblico ou pressuposicionalismo bíblico, desde que seja claro que o pressuposicionalismo bíblico não é mo pseudopressuposicionalismo de Van Til e Bahnsen. Seu método também pode ser chamado pressuposicionalismo sincrético, pois, contrariamente à sua afirmação, ele pressiona a síntese entre o pensamento cristão e o não cristão, e oferece aos princípios não cristãos a prioridade.

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Extraído de:
CHEUNG, Vincent. Systematic Theology. ed. 2010.

Traduzido por:
Cristiano Lima