terça-feira, 31 de julho de 2018

A UNIDADE DA ESCRITURA – Vincent Cheung

A inspiração da Escritura implica a unidade da Escritura. O fato de que as palavras da Escritura procedem de uma mente divina racional implica que ela deve exibir perfeita coerência. Isso é o que encontramos na Bíblia. Embora a personalidade e o estilo literário de cada escritor sejam evidentes, o desígnio e a unidade da Bíblia indicam um único autor divino. Cada documento escriturístico exibe uma consistência interna perfeita e todos os documentos são consistentes entre si. A Bíblia nunca se contradiz.

Jesus afirma a coerência da Escritura, e Ele assume isso em todos os seus ensinamentos e aplicações da Bíblia. Isso é demonstrado em sua resposta à tentação de Satanás:

     Então o diabo o levou à cidade santa, colocou-o na parte mais alta do templo e lhe disse: "Se você é o Filho de Deus, jogue-se daqui para baixo. Pois está escrito: ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, e com as mãos eles o segurarão, para que você não tropece em alguma pedra’". Jesus lhe respondeu: "Também está escrito: ‘Não ponha à prova o Senhor, o seu Deus’".
(Mateus 4:5-7)

Satanás insta Jesus a pular do templo com base no Salmo 91: 11-12. Jesus replica com Deuteronômio 6:16, sugerindo que o uso da passagem por Satanás contradiz a instrução de Deuteronômio e, portanto, é uma má aplicação. Quando uma pessoa interpreta uma passagem da Escritura de uma maneira que contradiz outra passagem, ela está manejado mau o texto. O argumento de Cristo assume a unidade da Escritura, e mesmo o diabo não a desafiou.

Em outra ocasião, quando Jesus confronta os fariseus, seu desafio a eles assume a unidade da Escritura e a lei da não contradição:

     Estando os fariseus reunidos, Jesus lhes perguntou: "O que vocês pensam a respeito do Cristo? De quem ele é filho?" "É filho de Davi", responderam eles. Ele lhes disse: "Então, como é que Davi, falando pelo Espírito, o chama ‘Senhor’? Pois ele afirma: ‘O Senhor disse ao meu Senhor: "Senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo de teus pés" ’. Se, pois, Davi o chama ‘Senhor’, como pode ser ele seu filho? " Ninguém conseguia responder-lhe uma palavra; e daquele dia em diante, ninguém jamais se atreveu a lhe fazer perguntas.
(Mateus 22:41-46)

Uma vez que Davi estava "falando pelo Espírito", ele não poderia ter errado. Mas se Cristo era o descendente de Davi, como poderia Ele também ser o Senhor de Davi? O fato de isso colocar um problema, em primeiro lugar, significa que tanto Jesus como os fariseus assumiam a unidade da Escritura e a lei da não contradição. Se eles acreditassem que a Escritura se contradiz, ou se eles pensassem que uma pessoa pode afirmar duas proposições que contradizem uma à outra, então Jesus não estaria fazendo um ponto significativo. A resposta é que o Messias seria tanto humano quanto divino e, portanto, "filho" e "Senhor" de Davi.

No entanto, é popular tolerar contradições na teologia. Alister McGrath escreve em seu Understanding Doctrine:

     O fato de que algo é paradoxal e até mesmo autocontraditório, não o invalida... Aqueles dentre nós que têm trabalhado no campo científico estão muitíssimos conscientes da completa complexidade e do caráter misterioso da realidade. Os eventos subjacentes à teoria quântica, as dificuldades de se usar modelos na explicação científica — para mencionar apenas dois fatores de que posso lembrar claramente do meu próprio período como cientista natural — apontam para a inevitabilidade do paradoxo e da contradição em tudo, exceto quando o compromisso com a realidade é o mais superficial.... [6]

Isso é absurdo. Concedendo que McGrath conhece ciência suficiente para falar sobre o assunto, isso é um testemunho contra a ciência, e não um argumento para abraçar as contradições na teologia. Ele assume a confiabilidade da ciência e julga todas as outras disciplinas por ela. Seu pensamento é que, se existem contradições na ciência, então as contradições devem ser aceitáveis, e devemos aceitá-las também na teologia.

No entanto, o fato de a ciência muitas vezes se contradizer é uma razão para afirmar que ela é irracional e não confiável, e não uma razão para permitir contradições em outros campos de estudo. A ciência é uma disciplina de especulação irracional sobre a realidade. Às vezes, suas teorias se correlacionam com efeitos que desejamos, mas não podem descobrir qualquer verdade sobre a realidade. O conhecimento sobre a realidade vem de deduções válidas da revelação bíblica e nunca de métodos científicos ou empíricos.[7] McGrath não nos dá argumentos para ignorar ou tolerar as contradições da ciência; antes, ele assume a confiabilidade da ciência apesar das contradições. Não há justificação para isso.

O que faz da ciência o padrão pelo qual devemos julgar todas as outras disciplinas? O que dá à ciência o direito de fazer regras para todos os outros campos de estudo? McGrath afirma que a ciência aponta "para a inevitabilidade do paradoxo e da contradição em tudo, exceto quando o compromisso com a realidade é o mais superficial". Mas a ciência não é teologia. A ciência se contradiz e desmorona, mas isso não significa que a teologia tenha o mesmo destino. Na verdade, McGrath tem um problema muito grande. Sua declaração implica que, a menos que Deus se contradiga quando fala conosco, suas palavras são "muito superficiais". Ele está certo de que a ciência se contradiz, mas a aplicação à teologia é falsa.

Em todo caso, a teologia lida com Deus, que tem o direito e o poder de governar todo o pensamento e a vida.
Deus conhece a natureza da realidade e a comunica através da Bíblia. Portanto, é a teologia que faz as regras para a ciência, e um sistema bíblico de teologia não contém paradoxos ou contradições. Em sua tentativa de negar isso, McGrath se compromete com a blasfêmia de que Deus seja inconsistente, ou Ele seja superficial. Ele parece pensar que, se os homens não podem falar sobre a realidade sem contradições, então, mesmo Deus não pode nos falar sobre a realidade sem contradições. Isso é o quanto McGrath pensa dos homens, ou melhor, isso é o quão pouco ele pensa de Deus.

Para qualquer proposição que afirme X, a proposição que a contradiz é aquela que afirma não-X. Isto é o que uma contradição significa. Qualquer proposição que afirme uma coisa é, por necessidade, também uma negação de seu oposto. Afirmar X é negar não-X e afirmar não-X é negar X. Para manter isso simples, vamos supor que Y = não-X, de modo que o oposto de X seja Y. Assim, afirmar X é negar Y, e afirmar Y é negar X. Ou, X = não-Y e Y = não-X. Então, uma vez que afirmar uma proposição é negar seu oposto, afirmar X e Y ao mesmo tempo é o equivalente de corresponder não-Y e não-X. Assim, afirmar duas proposições contraditórias é, na realidade, negar ambas. Mas afirmar tanto não-Y quanto não-X é também afirmar X e Y, o que significa novamente negar Y e X. E assim toda a operação se torna sem sentido. O resultado é que é impossível afirmar duas proposições contraditórias ao mesmo tempo. Afirmar a proposição "Adão é um homem" (X) é negar a proposição contraditória "Adão não é um homem" (Y ou não-X). Da mesma forma, afirmar a proposição, "Adão não é um
homem "(Y), é negar a proposição contraditória, "Adão é um homem "(X). Agora, afirmar tanto "Adão é um homem" (X) e "Adão não é um homem" (Y) é apenas negar ambas as proposições em ordem inversa. Isto é, é equivalente a negar "Adão não é um homem" (Y) e "Adão é um homem" (X). Mas então voltamos a reafirmar as duas proposições em ordem inversa. Quando afirmamos ambas, negamos ambas; quando negamos ambas, afirmamos ambas. Portanto, não há significado inteligível na afirmação de duas proposições contraditórias. É dizer não nada e não acreditar em nada.

Para ilustrar, é claro que a soberania divina e a liberdade humana contradizem uma à outra.[8] Se Deus controla tudo, incluindo os pensamentos do homem, então o homem não é livre de Deus. Se o homem é livre de Deus em qualquer sentido ou em qualquer grau, então Deus não controla tudo.[9] No entanto, alguns teólogos afirmam que a Bíblia ensina ambas a soberania divina e a liberdade humana, e assim eles insistem que devemos afirmar ambas. Contudo, uma vez que afirmar a soberania divina é negar a liberdade humana, e afirmar a liberdade humana é negar a soberania divina, então afirmar ambas apenas significa rejeitar tanto a soberania divina (na forma de uma afirmação da liberdade humana) quanto a liberdade humana ( na forma de uma afirmação da soberania divina). Mas negar ambas significa afirmar ambas na ordem inversa e afirmar ambas significa negar ambas em ordem inversa novamente.

O resultado necessário é que a pessoa que alega crer tanto na soberania divina quanto na liberdade humana não acredita em nenhuma delas. Ao alegar acreditar em tudo da Bíblia, ele de fato não acredita em nada dela.

Nesse exemplo, uma vez que a Bíblia afirma a soberania divina e nega a liberdade humana, não há contradição – nem mesmo aparente. Por outro lado, quando os não cristãos alegam que a encarnação de Cristo acarreta uma contradição, o cristão não tem a opção de negar a divindade nem a humanidade de Cristo. Antes, ele deve formular a doutrina como a Bíblia a ensina e mostrar que não há contradição. O mesmo se aplica à doutrina da Trindade. Em qualquer caso, se uma pessoa afirma que ele vê contradições na Bíblia, isso significa que ele não pode acreditar na Bíblia.

Uma resposta popular é que essas são apenas aparentes contradições; ou seja, as doutrinas apenas parecem contradições para a mente dos homens, mas elas estão em perfeita harmonia na mente de Deus. Esta resposta é fútil. Não há diferença entre uma aparente contradição e uma contradição real quando se trata de afirmá-las. Permanece que afirmar algo é negar o outro ao mesmo tempo, de modo que afirmar ambas é negar ambas, e negar ambas é reafirmar ambas. Assim, a pessoa que afirma uma contradição aparente realmente não afirma nada e não nega nada. Se a contradição é apenas aparente é algo irrelevante. Desde que pareça real para a pessoa, ela é real o bastante.

Além disso, como pode uma pessoa distinguir entre uma aparente contradição e uma contradição real? Ela nunca pode saber que uma contradição é apenas aparente. A menos que ela saiba como resolver a aparente contradição, a mesma parecerá para ela uma contradição real. E se ela sabe que uma contradição é apenas aparente, então ela já a resolveu e o termo contradição não mais se aplica. Se devemos tolerar contradições aparentes, então devemos tolerar todas as contradições. Mas se nós tolerarmos aparente contradições, então não há nada para impedir que os não cristãos afirmem que as contradições em suas cosmovisões são apenas aparentes.

D. Martyn Lloyd-Jones ilustra como a tradição de abraçar o paradoxo tem envenenado nossa teologia. Ele faz os cristãos parecerem tolos diante do mundo. Isso é tão ridículo que devo fazer um ponto dizendo que estes são dois parágrafos consecutivos, sem nenhuma interrupção entre eles:

     Acima de tudo, é preciso que compreendamos que há certas coisas que,  com nossas mentes finitas, não seremos capazes de conciliar umas com as outras. Ora, estou tentando evitar o uso de termos técnicos o quanto posso, todavia aqui devo introduzir a palavra antinomia – não antimônio.  O que é uma antinomia? É aquela posição em que nos são dadas duas verdades, as quais, para nós mesmos, não podemos conciliar. Há certas antinomias finais na Bíblia, e, como pessoas de fé, devemos estar dispostos a aceitar tal fato. Quando alguém diz: "Oh, mas você não pode reconciliar esses dois", você deve prontamente dizer: "É verdade, não posso". Não presumo ser capaz de fazê-lo. Eu não sei.  Só creio no que me é dito nas Escrituras."

     Pois bem, aproximamo-nos dessa grande doutrina assim: à luz das coisas que já consideramos sobre o ser,  a natureza e o caráter de Deus, esta doutrina dos decretos eternos deve ser deduzida como uma necessidade suprema e absoluta. Devido Deus ser quem é e o que Ele é, Ele tem de operar da maneira como Ele opera. Como temos visto, todas as doutrinas na Bíblia são consistentes umas com as outras, e quando estamos considerando uma doutrina específica, devemos lembrar que ela deve ser sempre consistente com as demais. Portanto, quando decidimos estudar o que a Bíblia nos afirma sobre como Deus age,  devemos tomar cuidado para não dizermos algo que contradiga o que já afirmamos sobre a sua Onisciência, sua Onipotência e todas as demais coisas, que juntos temos concordado estarem nas Escrituras.[10]

No primeiro parágrafo, ele insiste na contradição. No segundo, ele insiste na coerência. É difícil determinar a razão exata dessa insanidade. Talvez o primeiro parágrafo mostre que ele foi infectado com a tradição humana de que existem contradições na Bíblia, sejam aparentes ou reais, e que a piedade acarreta um paradoxo. E talvez o segundo parágrafo expresse o que ele é compelido a admitir, que se a Bíblia é verdadeira, ela deve ser autoconsistente, e que se quisermos entender a Bíblia, ou se devemos afirmar a Bíblia, então devemos percebê-la como autoconsistente, sem contradições aparentes ou reais. Em todo caso, ele diz: há certas coisas que, com nossas mentes finitas, não seremos capazes de conciliar umas com as outras." Mas se esses dois parágrafos fornecem alguma indicação, parece que algumas mentes são muito mais finitas do que outras.[11]

Cientistas e não cristãos podem chafurdar em contradições, mas os cristãos não devem tolerá-los. Em vez de abandonar a unidade das Escrituras ou a lei da não contradição como uma "defesa" contra aqueles que afirmam que as doutrinas bíblicas se contradizem, devemos afirmar e demonstrar a perfeita harmonia dessas doutrinas.

NOTA DE RODAPÉ:

[6] Alister McGrath, Understanding Doctrine; Grand Rapids, Michigan: Zondervan Publishing House, 1990; p. 138.

[7] Veja Vincent Cheung, Ultimate Questions e Presuppositional Confrontations.

[8] A doutrina da soberania divina será discutida e aplicada ao longo deste livro. Veja também Vincent
Cheung, Commentary on Ephesians e The Author of Sin.

[9] A doutrina do compatibilismo ensina que o homem não é livre de Deus, mas que o homem ainda é livre em um sentido. No entanto, a menos que o tipo de liberdade sob consideração seja a liberdade de Deus, isso é irrelevante, uma vez que o tópico diz respeito ao controle de Deus sobre o homem. Veja Vincent Cheung, The Author of Sin.

[10] D. Martyn Lloyd-Jones, Great Doctrines of the Bible, Vol. 1 (Crossway), p. 95-96. Publicado em português com o título "Grandes Doutrinas Bíblicas - Deus o Pai, Deus o Filho. Vol. 1 ( PES 1996). pp. 128-129.

[11] Veja Vincent Cheung, Blasphemy and Mystery.

_________________
Extraído de:
CHEUNG, Vincent. Systematic Theology. ed. 2010. pp. 23-24.

Traduzido por:
Cristiano Lima, em 31/07/2018.

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