Você já ouviu dizer: "Deseje o Doador, não os dons". Eu nunca fui capaz de dizer isso, e me pergunto onde estão todos esses semideuses que podem se dar ao luxo de abrir mão dos dons de Deus, e que acham que têm a opção de fazer essa afirmação. Este slogan popular implica no ponto legítimo de que devemos desejar a Deus por Ele mesmo e não apenas ou principalmente pelo que Ele pode fazer por nós. Esta é uma lição valiosa, já que Deus é de fato um fim em si mesmo. Ele não é uma ferramenta para nós usarmos, nem um degrau para alcançarmos algo maior, pois não há nada maior. No entanto, esse slogan falha em afirmar diretamente esse ponto e, após isso, se encaminha para algo perigoso e sacrílego.
Se não levarmos as palavras a sério, então qualquer afirmação pode ser considerada aceitável ou inaceitável, pois seria sem sentido. Mas se levarmos as palavras a sério, então o "não" no slogan deve significar algo e não deve significar outras coisas. Não diz: "Deseje o Doador e os dons", ou "Deseje o Doador mais do que os dons", ou uma versão mais elaborada "Deseje o Doador, e faça da sua comunhão com Ele o contexto dentro do qual você deseja seus dons, por seu próprio bem e pelo bem de seu reino" (essa última seria minha posição). Ao contrário, o slogan diz: "Deseje o Doador, não os dons". Às vezes, as pessoas percebem que isso não está certo e usam uma das outras formas, mas agora nosso interesse está nessa forma, onde um "não" é aplicado aos dons.
Há duas considerações que revelam os problemas. Primeiro, dadas as alternativas, usar "não" na afirmação deve sugerir ou uma rejeição aos dons de Deus ou uma indiferença para com eles. Se houver algum desejo por eles, o termo correto seria "mais do que" em vez de "não". Segundo, embora cristãos de diferentes tradições possam atribuir significados diferentes à palavra "dons", na realidade não são apenas as coisas que precisamos para nos destacar na vida e no ministério que são dons, mas também as coisas que precisamos para sobreviver, até mesmo o ar e a chuva, são dons de Deus. Isso é especialmente verdadeiro para os cristãos, que supostamente devem possuir a percepção de que todas as coisas boas vêm de Deus e devem ser encorajados na fé até mesmo por coisas naturalmente benevolentes como comida e água, quando os reprovados são endurecidos por elas.
Dito isso, existem pelo menos quatro problemas com o slogan.
Primeiro, é absolutamente desagradável. Imagine oferecer um presente ao seu filho e ele diz: "Eu quero você, não seu presente!" E você pensaria: "Sim, e estou bem aqui, te dando o presente. Pegue, seu mimado!"
Segundo, reflete uma atitude orgulhosa e soberba. Às vezes, quando você sai para comer com um amigo, você paga sua própria refeição e ele paga a dele. Você deseja a companhia dele, não uma refeição grátis. Mas você acha que pode pagar sua própria conta com Deus? A afirmação fala como se pudéssemos ter comunhão com Ele em pé de igualdade. Novamente, eu admito que isso provavelmente não é a intenção da afirmação, mas a palavra "não" torna essa implicação difícil de evitar.
Terceiro, revela falta de amor por Deus ou uma percepção tragicamente falsa sobre os Seus dons.
Quando minha esposa e eu nos conhecemos e decidimos nos casar, frequentávamos escolas secundárias em países diferentes. (Foi só depois de nos formarmos na faculdade, também em lugares diferentes, que nos casamos.) Naquela época, o e-mail não era tão popular e as ligações telefônicas eram muito caras. Então escrevíamos muitas cartas um para o outro. Levava até dez dias para uma carta viajar de um local para o outro. Era uma agonia pura. Eu esperava por cada carta com o coração ardendo e a abria com mãos trêmulas. Depois, eu a guardava cuidadosamente e escrevia uma resposta. Ah, como eu desejava a próxima carta! Até hoje, ainda temos as cartas que nos enviamos, junto com os envelopes originais. Começamos a usar o e-mail quando estávamos na faculdade, e eu sempre, até hoje, guardei todos os e-mails que ela me enviou, não importa o quão trivial fossem.
Por que você acha que faço isso? Você acha que faço isso porque estou apaixonado por cartas e e-mails? Se for esse o caso, isso me diz que você não entende nada sobre amor. Não, eu me comporto assim porque estou apaixonado por ela! Estou enamorado dela. E valorizo as coisas que ela me dá porque elas vêm dela. Certamente não penso mais nas cartas do que nela. E em um incêndio, certamente não resgataria as cartas e deixaria ela perecer. Isso seria absurdo. Sem dúvida, eu a resgataria e deixaria as cartas queimarem. Há uma prioridade, mas não há uma dicotomia.
Se o amor entre um homem e uma mulher é um reflexo do amor entre Cristo e a Igreja, se Deus é meu Pai e Cristo é meu primeiro amor, e o Espírito Santo é a fonte e a causa até do amor que tenho por minha esposa, então quanto mais devo me angustiar para receber dEle! Assim como seria antinatural impor uma dicotomia entre minha esposa e os presentes dela, seria antinatural impor uma entre Deus e todas as coisas na vida, seja falando de comida e água, amigos, saúde ou poder do Espírito para o ministério. A razão pela qual você acha que pode "não" desejar comida e água é porque não vê Deus em seu acesso à comida e água. A razão pela qual você acha que pode "não" desejar dons espirituais, mesmo que sinta o fardo do ministério, é porque acha que eles são opcionais. Você acha que é forte e rico. Você não está desesperado.
Eu era um mendigo, e Deus me fez um príncipe em Cristo. Mas meu status depende de minha associação contínua com Ele; isto é, em mim mesmo, eu sempre permaneço um mendigo. Como Ele disse: "Permaneçam em mim, e eu permanecerei em vocês. Nenhum ramo pode dar fruto por si mesmo; ele deve permanecer na videira. Assim também vocês, se não permanecerem em mim, serão como o ramo que é jogado fora e seca. Tais ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados. Se vocês permanecerem em mim e minhas palavras permanecerem em vocês, peçam o que quiserem e será concedido a vocês" (João 15:4-7). Ele não disse: "Permaneçam em mim e não peçam nada", mas "Permaneçam em mim e peçam o que quiserem".
Quarto, e isso decorre do acima, o slogan popular introduz culpa antibíblica, limitações desnecessárias e uma autoanálise desmedida na vida espiritual de um cristão, enfraquecendo sua fé na oração e no poder no ministério. Ele persuade a pessoa a desconfiar de seus próprios motivos por um princípio que é contrário à Escritura. Ele prende a consciência com uma mentira.
Louvado seja Deus, Sua palavra nos liberta para desejar a Ele e a Seus dons, e para sermos gratos por eles. Eu desejo a Deus e a todos os Seus dons. Eu quero tudo, e mais de tudo. E quanto mais eu O amo e O conheço, mais eu testemunho Sua majestade e grandeza, mais eu reconheço minha necessidade de Seus dons e mais aumenta meu desejo por eles. Mas quando isso acontece, esse desejo é desenvolvido no contexto da comunhão com Ele. Não há "não", não há dicotomia.
Assim, recuso-me a deixar que as pessoas me enganem para rejeitar o que Deus está tão ansioso para dar e o que estou tão desesperado para receber. Jesus disse: "Busquem primeiro o Reino Dele, e todas essas coisas vos serão acrescentadas". Ali Ele falou contra a preocupação, que é contrária a Deus e contrária à fé, e a prioridade correta deve ser estabelecida. Mas quando Ele ensinou Seus discípulos a orar – isto é, no contexto da fé e da comunhão com Deus – Ele disse para pedir pelo pão nosso de cada dia.
Precisamos dos dons de Deus para viver neste mundo e especialmente para ter sucesso no trabalho do evangelho. Se nos importarmos apenas com os dons, então não somos cristãos, e seria estranho sequer percebê-los como "dons". Mas se tivermos comunhão com Deus, então também devemos ter a percepção correta sobre Seus dons, e desejá-los com toda a fé e ânsia, sem piedade falsa, sem culpa e vergonha. O Senhor nos disse para pedir e receber, para que nossa alegria seja completa.
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