quarta-feira, 18 de julho de 2018

DESAFIO: A Precondição do Significado – Vincent Cheung

Imagine que estamos assistindo a um jogo de tênis na televisão, embora, para nosso propósito, possa ser simplesmente qualquer tipo de jogo – basquete, futebol ou até mesmo xadrez. Suponha que eu conheça as regras do tênis, mas você não as conhece. E suponha ainda que tenhamos silenciado a televisão, de modo que não recebamos nenhuma comunicação verbal do comentarista. Por fim, suponha que não haja comunicação visual, de modo que nem as pontuações sejam mostradas. Agora, minha pergunta, é se o jogo será totalmente inteligível para você.

Se eu prestar muita atenção, ainda serei capaz de acompanhar o jogo mesmo sem qualquer comunicação verbal, porque já conheço as regras do jogo. Da mesma forma, os próprios jogadores seriam capazes de seguir o jogo sem a constante assistência do locutor ou do placar. Por outro lado, embora você esteja assistindo ao mesmo jogo, você não seria capaz de entender o que está vendo, pois não conhece as regras.

Isso significa que, quando você está assistindo a um jogo, o que você observa não fornece sua própria inteligibilidade e interpretação.[1] Para que um jogo seja inteligível à você e você tenha a interpretação correta do que está acontecendo, você deve trazer uma quantidade considerável de conhecimento para o ato de assistir ao jogo, e esse conhecimento não vem de assistir o jogo em si. Se eu tivesse explicado as regras antes do jogo, ou se eu explico as regras enquanto estamos assistindo ao jogo, então o que você está assistindo se tornará inteligível, e será capaz de interpretar corretamente o que está vendo.

Você pode argumentar que é possível derivar algumas das regras pela observação. Mas isso não é tão simples quanto a maioria das pessoas pensa. Por exemplo, suponha que você observe depois de cada "xeque-mate", que os dois jogadores se afastam do tabuleiro de xadrez. O que você pode inferir a partir disso? Você não pode inferir que um deles ganhou a menos que você conheça as regras. Talvez "xeque-mate" signifique um empate. Talvez isso signifique que os jogadores estão entediados e decidiram desistir do xadrez. Talvez isso signifique que é hora do almoço.
Você precisa saber que se trata de um jogo, que pode ser ganho ou perdido e como ele é ganho ou perdido. Mesmo se você inferir que um deles ganhou, de onde você obteve as categorias de "ganhar" e "perder" em seu pensamento? Você não obteve isso a partir da observação do jogo em si. Você deve trazer essas ideias para o ato de observação.

E quanto às ideias de tempo e causalidade? Elas são requeridas para entender o jogo, mas você não pode derivá-las do jogo. Você deve trazer essas ideias para o ato da observação. Alguns princípios éticos são também pressupostos. Você deve presumir que os jogadores não costumam trapacear, e que os jogadores não podem se safar com trapaças, ou então o jogo não teria regularidade suficiente para você derivar qualquer regra dele. Entretanto, se uma pessoa trapaceia e sai impune, como você saberá que ele está trapaceando ou se a ação dele é apenas uma exceção permitida pelas regras?

Se reservarmos tempo para enumerar, podemos explicitar dezenas, ou mais provavelmente centenas ou mesmo milhares de pressupostos necessários para que o jogo seja inteligível à sua observação, quando, ao mesmo tempo, essas pressuposições não podem vir do ato de observação. Para tornar as coisas mais difíceis, existem milhares de elementos arbitrários em todos os jogos que não são essenciais às regras, embora sejam objetos de observação. Por exemplo, se um jogo de xadrez é jogado por dois homens em trajes formais, o que você pode inferir disso? Você infere que essa é uma regra essencial do xadrez? E se assim for, as mulheres também devem usar ternos masculinos ou podem usar vestidos? Claro, as pessoas usam roupas normais quando estão jogando xadrez em outros ambientes. Mas como você sabe que eles não estão violando as regras, e que eles estão apenas fugindo disso? Ou você assume sem garantia que se eles estivessem de fato em violação, as regras sempre seriam aplicadas contra eles?

Sem conhecimento que vem a parte da observação, a observação em si não pode fazer sentido ou comunicar qualquer informação. A inteligibilidade e a interpretação da observação pressupõem conhecimento sobre os objetos de observação, e esse conhecimento não pode vir do próprio ato da observação. Ou seja, a inteligibilidade e interpretação de uma experiência é tornada possível pelo conhecimento que vem a parte da experiência. Esse conhecimento pode ser algo inato ou algo que seja recebido pela instrução verbal.

Se a mente estivesse totalmente em branco, de modo que nem sequer possuísse categorias como tempo, espaço e causalidade, a inteligibilidade e a interpretação seriam impossíveis. De fato, se a sua mente está em branco, sem nenhum conhecimento que vem à parte da observação, seu mundo seria para você como um turbilhão de sensações com nenhuma forma de organizá-las ou interpretá-las. Entretanto, se um conhecimento não observacional prévio da realidade é necessário para interpretar adequadamente a observação sobre a realidade, isso significa que a ordem e o significado que você observa são impostos ao que você observa, e nunca derivados do que você vê. Essa é outra maneira de dizer que o significado do que você observa é governado por suas pressuposições.

Retornando à nossa ilustração inicial, o que acontece se você pressupõe as regras do basquete ou do xadrez quando assiste ao jogo de tênis? Mesmo que pareça que você seja capaz de entender as coisas que você observa, porque as regras erradas são pressupostas, sua interpretação será falsa. Portanto, não é suficiente reconhecer que pressuposições não observacionais precedem a inteligibilidade e a interpretação, mas devemos perceber que nem todas as pressuposições são iguais e que elas podem ser verdadeiras ou falsas.

Nós estabelecemos várias possibilidades sobre o que acontece quando assistimos a um jogo de tênis:

1. A mente é totalmente branca, e nesse caso nada é inteligível, e a interpretação é impossível.

2. A mente contém apenas categorias básicas sem conhecimento das regras do jogo, de modo que ela reconhece conceitos como tempo, causalidade, ética e vitória. A interpretação ainda é impossível.

3. A mente aplica falsas pressuposições ao jogo, de modo que ela pode aplicar as regras do basquete ao tênis. A interpretação é impossível ou produz resultados falsos quando empreendida.

4. A mente contém as pressuposições corretas sobre o universo em geral e sobre o tênis em particular. A interpretação correta é possível.

O resultado é que duas pessoas podem observar a mesma coisa e chegar a interpretações contraditórias. No entanto, isso não precisa resultar em relativismo, pois uma pessoa pode estar certa e a outra pode estar errada. Depende de qual deles tem as pressuposições corretas sobre o universo em geral, e sobre o objeto que está sob observação em particular.

Aqui estão dois exemplos bíblicos que ilustram o que tem sido dito. O primeiro mostra que a observação não é confiável em primeiro lugar, e o segundo mostra que nossas pressuposições determinam a interpretação do que observamos, de modo que as pressuposições erradas levarão a uma falsa interpretação.

O primeiro exemplo vem de João 12:28-29. Assim que Jesus exclama, “Pai, glorifica o teu nome!”, a Escritura diz, “Então veio uma voz dos céus: ‘Eu já o glorifiquei e o glorificarei novamente’. A multidão que ali estava e a ouviu, disse que tinha trovejado; outros disseram que um anjo lhe tinha falado”. O testemunho infalível da Escritura diz que a voz expressou uma sentença completa: “Eu já o glorifiquei e o glorificarei novamente”. Todavia, alguns daqueles que estavam presentes, que observaram o mesmo evento, disseram “que tinha trovejado”. Portanto, a observação não é confiável, e a verdade nunca pode ser descoberta pela observação.

O segundo exemplo vem de Mateus 12:22-28, e diz respeito à autoridade de Cristo para expelir demônios: “Depois disso, levaram-lhe um endemoninhado que era cego e mudo, e Jesus o curou, de modo que ele pôde falar e ver.
Todo o povo ficou atônito e disse: ‘Não será este o Filho de Davi?’. Mas quando os fariseus ouviram isso, disseram: ‘É somente por Belzebu, o príncipe dos demônios, que ele expulsa demônios’” (v. 22-24). Baseada em sua observação do evento, a audiência geral estava preparada para considerar pelo menos a possibilidade de que Jesus fosse o Cristo, mas os fariseus, que tinham observado o mesmo evento, disseram que ele expelia demônios pelo poder de Satanás.

Contudo, isso não levou a um impasse, nem reduziu a verdade a juízos relativos e subjetivos. A resposta de Cristo indica que nem todas as interpretações estão corretas:

     Todo reino dividido contra si mesmo será arruinado, e toda cidade ou casa dividida contra si mesma não subsistirá. Se Satanás expulsa Satanás, está dividido contra si mesmo. Como, então, subsistirá seu reino? E se eu expulso demônios por Belzebu, por quem os expulsam os filhos de vocês? Por isso, eles mesmos serão juízes sobre vocês. Mas se é pelo Espírito de Deus que eu expulso demônios, então chegou a vocês o Reino de Deus. (v. 25-28)

Ele primeiro reduz a afirmação deles ao absurdo, e então dá a interpretação
correta do evento, e conclui com uma implicação sobre o evangelho.

Se os fariseus tivessem crido verdadeiramente na Escritura, eles deveriam ter chegado à mesma interpretação sobre Cristo como aquela que o próprio Cristo afirmou sobre si mesmo. Mas embora reivindicassem crer na Escritura, na realidade eles suprimiam a verdade sobre ela.
Embora eles tivessem acesso às pressuposições corretas ou ao conhecimento pelo qual eles poderiam interpretar corretamente a realidade, por causa da sua pecaminosidade, eles rejeitaram aceitar essas pressuposições e suas implicações, e rejeitaram assim a verdade, suprimindo-a e distorcendo-a.

NOTA DE RODAPÉ:

[1] É claro que a própria observação deve ser possível para chegar a este ponto na discussão. Ou seja, estamos assumindo que quando você pensa que vê uma bola de tênis, de fato você vê uma bola de tênis. Esta suposição infundada e irracional nunca pode ser estabelecida. Mas iremos permitir isso por enquanto, para que nossa discussão sobre inteligibilidade e interpretação possa continuar.

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Extraído de:
CHEUNG, Vincent. Pressupositional Confrontations. ed. 2010. pp. 4-7.

Traduzido por:
Cristiano Lima, em 18/07/2018.

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